Fafá Conta

Comecei o feriado recebendo mensagens que muitas mães e pais devem ter recebido também em grupos de whatsapp e redes sociais por aí. O tema das mensagens era o conteúdo do livro “O menino que espiava para dentro“, de Ana Maria Machado.

Antes de vociferar opiniões enviesadas por aí, vamos parar pra ler um pouco? Compartilho com vocês a

“Carta de apoio à Ana Maria Machado e à Literatura”:

Em virtude dos recentes posts e mensagens que alegam incitação ao suicídio no livro infantil “O menino que espiava pra dentro”, da consagrada autora Ana Maria Machado, e também por outros casos semelhantes que vêm acontecendo ultimamente, nós, incentivadoras digitais, amantes e estudiosas da Literatura Infantil e Juvenil, gostaríamos de falar um pouco sobre o assunto.

Em primeiro lugar, acreditamos que uma obra literária não pode ser lida ou interpretada a partir de um fragmento descontextualizado. É necessário compreender o texto por inteiro e com isso a mensagem completa do autor. Uma descontextualização dessas pode gerar ruídos que denunciam a formação de leitores deficitária deste país, mostrando como a literatura é mal interpretada, infelizmente.

O livro narra a história de um menino cheio de imaginação, que ama explorar seu mundo interior. Numa intertextualidade com contos de fadas clássicos, ele brinca de ser um “Belo adormecido” ou “Branco de neve”, querendo ficar um tempo mais longo no mundo da imaginação. Assim, usa o mesmo recurso da história da Branca de Neve contada pelos Irmãos Grimm originalmente: engasga com uma maçã e vai para o mundo da imaginação, para depois “desengasgar” e voltar ao mundo “real”. Reparem que a autora refere-se à versão mais antiga e anterior à versão da Disney, em que a personagem engole uma maçã envenenada e é acordada por um príncipe.

É importante frisar dois pontos do final da história:

1) No fim do livro, ele é acordado pela mãe. Fica claro que a aventura foi um sonho do menino e não um caminho real para chegar ao mundo da imaginação.

2) Mesmo com as maravilhas do seu mundo interior, no fim, a aventura não dá certo, pois tudo fica escuro, já que ele não tinha mais o mundo exterior para alimentá-lo. Quando ele acorda do sonho, portanto, percebe o valor de viver a vida para além da imaginação. E isso fica claro no texto.

Contudo, se mesmo assim a família considerar o texto arriscado, não há problemas, basta não o incluir em seu acervo. Mas é necessário abrir-se para a possibilidade de outras pessoas interpretarem de maneira diferente. Outras famílias podem achar, por exemplo, que o livro fala sobre a beleza do mundo da imaginação que pode ser encontrada dentro de cada um, num equilíbrio imprescindível entre o mundo interior e o exterior.

Com esse ponto, ressaltamos a importância de o adulto acompanhar as leituras feitas pela criança e o grande valor da MEDIAÇÃO DE LEITURA e do DIÁLOGO. A literatura em sua essência não se propõe a ter finalidade educativa, obras literárias não devem ser compreendidas como obras didáticas. Em um livro de histórias (note bem: não nos referimos a didáticos ou paradidáticos), a narrativa impera e não há intenção de se ensinar qualquer coisa que seja. Bons livros nos levam a boas reflexões.

O menino que espiava pra dentro” foi publicado em 1983 e não estamos cientes de qualquer relato de criança que tenha se inspirado na obra para cometer qualquer ato contra a própria vida.

E, mesmo que o livro abordasse um tema tão delicado (o que não acontece!), afirmar que ele faz uma apologia ao suicídio é o mesmo que dizer que os contos das Mil e Uma Noites estimulam a violência ou que As Aventuras de Pinóquio incitariam à mentira.

Trazemos a público neste momento, assim, nosso apoio à Ana Maria Machado e a tantos outros autores que têm suas obras mal interpretadas e nos posicionamos contra todo e qualquer tipo de movimento que possa afastar ainda mais a Literatura Infantil da sua vocação maior: a arte.

Isabella @nacordabamba, Nedjma @contaoutravez, Padmini @bamboleio_literatura, Paula e Bruna @ler_o_mundo, Carol @conversadequintal Gisele e Cathe @kidsindoors, Nícia @euniciaf, Malu @mergulho.literario Anna @sobreissoeaquilo, Emília @maequele, Amélia @blogdolivrinho, Rosa @casa_da_rosinha, Nina @mardehistorias, Alessandra @ale_sementinhaliteraria, Cinthya @leiturarte_rj, Julia @tempolendo, Daisy @acigarraeaformiga, Jaqueline @lendojunto, Regiane @veredasnoinsta

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0 resposta

  1. Excelente postagem! Acredito que se essas pessoas que estão crucificando a autora lessem literatura infanto juvenil – ou se lessem algo além de ‘textos’ na Internet – fossem menos obtusas. Penso q oentendimento de sutilezas da linguagem literária só é possível para quem gosta de ler, e lê muito.

  2. Para a Fafá,
    “sobre trecho do menino que espiava para dentro”

    Uma pergunta, franca. Se um dia qualquer, por uma infelicidade um de nossos pequerruchos, após ser seu livro, ir mesmo a uma geladeira pegar uma maça e engasgar até a fatalidade.

    Qual sua avaliação, e resposta a isso ?

    Gostaria que realmente, respondesse a esta hipótese, mesmo que muito remota.

    1. Marçal, pensando dessa forma te responderei com outro questionamento: se um dia uma criança, depois de assistir a um filme de super herói, resolver colocar um lençol nas costas e tentar sair voando pela janela? Qual a sua avaliação?
      O livro trata de imaginação, do mundo do faz de conta onde tudo é possível, brinca com a história da Branca de Neve. E a autora ainda escreve “Olhar bem para tudo, viver de verdade, para o mundo de dentro ter mais variedade”. Para mim está bem claro.

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